A Exagerada, A Exata, A Morte e A Piada
- Bom dia Ana, tem tido notícias do Sr. Anibal?. O Sr. Aníbal era um vizinho em comum de Ana e
de Célia, e já tinha 94 anos, há algumas semanas tinha sido internado e estava
entre a vida e a morte.
- Bom dia Célia, respondeu Ana. Ele vai lá do jeitinho que é
normal nessa idade, não dá para esperar muito mais, não é?
- Pois, ele tem tido uma vida bastante longa, completa, o
duro é para quem fica, mas a única certeza da vida é a morte, e a família, mesmo
sofrendo, vai poder descansar um pouco dessa agonia, né?- respondeu Célia, com
aquelas conclusões óbvias e já muito usadas, mas que inevitavelmente
utilizamos, vezes sem conta.
- É verdade, a morte faz parte da vida!-disse Ana,
utilizando ela também a frase bengala, que não sendo original, arremata o
assunto.
- Então bom dia e esperemos que não chova, porque já não
aguento mais a porra dessa chuva, que me fode a vida, já não tenho mais
criatividade para arrumar lugares para estender a roupa! Agora sim, Célia foi
mais fiel a si mesma, uma vez que o palavrão fazia parte do seu vocabulário,
assim como os artigos, verbos, substantivos…
-Bom dia pra você também, deixa eu ir que o Arnaldo já deve
estar a sair, vou ver se ele precisa de alguma coisa- respondeu Ana, com um
risinho conformado, a fingir que já estava acostumada com os impropérios da
vizinha, mas que na verdade quase sempre a obrigava forçar um ar de normalidade
e evitar arregalar os olhos, exercício quase diário já há três anos, desde que
Célia havia mudado para a casa ao lado da sua, trazendo com ela toda uma forma
exagerada de viver.
Sim, exagerada, talvez a melhor definição para a
personalidade de Célia. Aquele ser que tem muita presença, fala muito alto,
gesticula sem parar, ri estridente e de maneira debochada. Tem opinião sobre
todos os assuntos, muitas certezas, muitas vezes incoerentes, mas a coerência
não é algo que a preocupa, quer é falar, quer estar. Em meio a essas
características, os palavrões são meros detalhes no seu discurso. Como um carro
alegórico que vem com brilho, cor, música, milhões de detalhes, que observamos
e dependendo do nosso humor, gostamos ou odiamos.
- Nunca imaginei que pudesse me dar tão bem com uma vizinha
assim…- pensou Ana enquanto abaixava
para pegar a “Folha de São Paulo”, que o jornaleiro deixava no chão da sua
garagem, para levar ao seu querido Arnaldo, que estaria a terminar o
café-da-manhã, quase a ponto de ir para o consultório.
Ana era toda uma senhora. Fez o magistério, como fizeram
todas as suas amigas, ingressou na rede de ensino público e leccionou para a
quarta classe durante quase toda a sua carreira. Foi o tipo da professora que
marcou toda uma geração. Dedicada, delicada, perfumada, arrumada. Nem pouco,
nem muito, sempre foi exata.
Exata, sim essa é a melhor palavra para explicar a
professora Ana, bem como a esposa Ana, amiga, companheira, que nunca (pelo
menos em público) contrariara o marido, que o olha com admiração, que valida
todas as suas opiniões, que o apoia em tudo, sem ter um ar de subordinada, mas
sim uma eterna namorada apaixonada.
A exactidão apenas abandonou Ana no quesito mãe, aliás não
abandonou, transbordou tornando-se grande, grandiosa, extrema , seria mais
justo dizer. Extremamente cuidadosa, pacificadora, presente, carinhosa. Extrema
e impecável com os seus frutos, três adultos já formados. Dois jovens médicos e
Anita, uma dentista que apesar de ter começado há dois anos a dar consultas já
tinha a agenda cheia, uma vez que tinha aprendido com a mãe a ser dedicada,
delicada, perfumada e arrumada.
Naquele mesmo dia, ao fim da tarde, Célia estaciona o seu
carro e repara numa agitação bastante fora da normalidade na casa da Ana, mas
nem pensou sobre o assunto. Enquanto tirava as compras do carro, a sua
empregada, Sueli, passou por ela com os olhos marejados, mas com uma grande
pressa para apanhar o ônibus que já dobrava a esquina, e disse:
- Já viu D. Célia, o Sr. Arnaldo morreu, que coisa
horrível!- mas por muito triste que se sentisse, o ônibus não iria esperar a
tristeza da Sueli, nem a creche que cuidava do seu filho, e é assim, a vida não
para (narrador também se apoia em frase bengala), lá foi a Sueli chorosa.
Célia fez um ar triste, encolheu os ombros, achou estranho o
estado emocional da empregada, mas pensou para si mesma:
- Pobre adora um drama, afinal o Sr. Anibal, já estava velho
para caralho, queria o quê? Que ficasse para semente?
Um leitor atento já deve ter entendido a confusão na cabeça
de Célia que continuou a pensar:
- Que merda esse velho morrer bem hoje, que estou que é só o
farelo… Vou ter que ir para porra do velório! Bem hoje que eu queria era deitar
na cama e assistir a minha novela.
Um pouco mais tarde o marido de Célia entrou em casa, com um
ar abatido, e perguntou se ela já sabia do que havia acontecido, enquanto ela
estava no banho. Ela respondeu que sim e completou com a frase:
- Foda-se, vamos ter que lá dar um pulo, justo hoje que
estou tão cansada.
O marido já estava habituado com as reacções malucas de
Célia, e embora tenha estranhado a frieza da mulher, resolveu nem discutir.
Rumaram para o velório da cidade, vale a pena salientar, uma
cidade pequena, onde quase todos se conhecem.
Célia, contrariada, ia reclamando no carro, sobre o
“programinha” inesperado que havia surgido e fazendo comentários aleatórios do
estilo:
- Vá por aquela rua, que é mais fácil estacionar por ali.
O marido sentia-se cansado e estava triste pensando:
- Tão típico da Célia, ao invés de mostrar tristeza mostra
zanga, deve ser a maneira dela de digerir uma notícia tão cruel como a morte
repentina do Arnaldo, imagine, ter um ataque cardíaco fulminante, no seu
consultório, parece irónico. Justo agora que os filhos estavam crescidos,
formados e as preocupações normais da vida iam diminuindo, que injustiça!
A morte de Arnaldo
fazia com que ele pensasse na própria vida, afinal tinham quase a mesma idade.
O marido reflectia se estava vivendo plenamente, se estaria pronto para deixar
a vida, coisas que pensamos sempre quando alguém da nossa idade morre. Mas
efectivamente, no outro dia, vamos trabalhar e ignoramos toda a filosofia e os
ensinamentos, as contas não pagam-se sozinhas, e a vida continua.
Chegaram no Velório Municipal, Célia foi andando na frente,
tinha pouca paciência para “a moleza” do marido. Sempre achou que ele pensava
muito e agia pouco, sempre o achou sentimental demais, muito dramático. Queria
despachar o assunto, cumprimentar, dar as condolências e encerrar o assunto.
Estranhou tanta gente no funeral do pobre Sr. Aníbal, pensou
consigo mesma:
- Essa gente não tem nenhuma coisa melhor para fazer, todos
aqui? Caralho, parece que não estavam a espera que o velho morresse!
Avistou os filhos de Ana, claramente muito abatidos, cumprimentando
todas as pessoas, muito envolvidos com o acontecimento, estranhou.
Avistou Ana, e sem reflectir, piscou-lhe o olho, abraçou-a
com carinho, e comentou:
- Ainda falamos dele hoje de manhã, não é Ana?
Ana, também habituada com as reacções de Célia, não
estranhou. Aceitou o abraço e ouviu a frase da vizinha:
- Nossa Ana, nunca imaginei que os seus filhos fossem tão
apegados ao Sr. Aníbal! Estão tão chorosos, coitadinhos.
Nesse momento, apesar de toda a confusão, Ana, a exacta, conseguiu
não sei como, compreender exactamente o que estava a acontecer, Célia estava a
confundir Aníbal com Arnaldo, e por muito que possa parecer absurdo, as vezes a
nossa mente prega essas peças. Estamos tão preparados para um acontecimento, que
não conseguimos enxergar outro.
Célia, com a calma
que lhe era apanágio, segurou na mão de Ana, e disse com calma:
- Célia, acho que você está a fazer uma grande confusão,
quem morreu foi o meu Arnaldo, teve um ataque cardíaco fulminante, tadinho, foi
sem sofrer, mas sem tempo para um adeus, o Sr. Aníbal continua vivo, coisas da
vida… (ou da morte). E abraçou a amiga, com toda a compaixão…
Imagino que a informação tenha sido uma pequena explosão na
consciência de Célia, primeiro entender o engano, depois realizar que o amigo
havia morrido inesperadamente, finalmente ter em conta todo o seu
comportamento, Bum, Bum, Bum, confusão, tristeza, vergonha!
Olhou para o caixão e lá viu o amigo Arnaldo, imóvel, com os
olhos fechados (óbvio).
Saiu da sua boca um som gutural:
- Puta que o pariu! O Arnaldo morreu! Como é que foi isso
minha gente? Como isso pode acontecer? Braços ao ar, olhar tresloucado, andando
as voltas do caixão.
O marido de Célia ficou pasmado, diferente de Ana, demorou
para entender o que havia acontecido, tentou tranquilizar a esposa, que causava
um embaraço gigante em meio aos que velavam o Sr.Arnaldo. Tentou abraçá-la e
pedir baixinho que parasse com o escândalo, mas ela desembaraçava-se dos braços
do marido e gritava ainda mais.
Ana, sem forças para conter a vizinha e sabendo que qualquer
gesto seu iria deixar Célia ainda mais reactiva, ficou a assistir ao
espectáculo calmamente, e, naquele momento até teve vontade de rir da situação.
Rapidamente os seus filhos vieram perguntar o que estava acontecendo, Ana
explicou. Os filhos, que tinha herdado a calma e generosidade da mãe,
simplesmente se entreolharam com alguma vontade de rir, e ficaram lado a lado,
esperando também pacificamente, a histeria de Célia acabar, resignados.
Desnecessário dizer que muitos que assistiram a cena, sem
conseguir perceber o ocorrido, pensaram que afinal a Célia era amante de
Arnaldo, e sendo aquele “carro alegórico” não havia poupado nada e nem ninguém
da sua dor, nem o próprio marido, que como sabemos, é o último a saber. Nesse
caso, foi mesmo.
Até hoje essa história é contada na cidade, desse velório
tão triste que teve um grande momento de piada e, desde então cada vez que
alguém é velado, reconta-se a história, misturando as lágrimas de tristeza com
algumas de riso, porque a vida continua, com todas as suas cores.